A corrupção passiva é tipificada no art. 317 do Código Penal nos seguintes termos:
“Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”
Em resumo, na primeira hipótese, a corrupção parte do intraneus; é o próprio funcionário público quem toma a iniciativa da mercancia ao solicitar que a vantagem lhe seja concedida. Já na segunda situação se supõe iniciativa do corruptor, pois receber e dar são ideias correlatas: a primeira depende da segunda. A última hipótese refere-se à aceitação de promessa de uma vantagem indevida. A palavra “promessa” deve ser entendida na sua acepção vulgar (consentir, anuir). Aqui a iniciativa também é do corruptor (particular que faz a promessa).
Como defendemos em nosso Manual de Direito Penal, a corrupção passiva só existe se houver um nexo entre a vantagem solicitada ou aceita e a atividade exercida pelo funcionário corrupto. Logo, se, não obstante funcionário público, o agente exerce função completamente estranha ao ato em razão do qual recebeu a vantagem ou aceitou a promessa, ou seja, se não é competente para a realização do ato comercializado, não há sentido em falar em crime de corrupção, pois falta ao agente um dos extremos legais constitutivos do tipo, podendo, nessa hipótese, ocorrer exploração de prestígio, estelionato, etc. É neste sentido também a lição de Cleber MassonDireito Penal (Esquematizado) – Parte Especial. São Paulo: Grupo Editorial Nacional, 2014. v. 3 (4 ed.), p. 662:
“O art. 317, caput, do Código Penal é taxativo ao determinar que na corrupção passiva a conduta de solicitar ou receber vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem, deve necessariamente ocorrer ‘em razão da função pública’, ou seja, opera-se uma negociação entre a vantagem indevida solicitada, recebida ou prometida e a prática ou a omissão de algum ato de ofício inserido no rol de atribuições do funcionário público. Este raciocínio nos leva às seguintes conclusões:
a) não há corrupção passiva se o ato não é da atribuição do funcionário público que solicitou, recebeu ou aceitou a promessa de vantagem indevida, embora tenha ele assim agido a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função. Nesse caso, estará caracterizado o crime de tráfico de influência (CP, art. 332). Exemplo: o professor de uma escola estadual recebe dinheiro do pai de um aluno envolvido em diversas confusões para influir na decisão do diretor do estabelecimento de ensino, sendo este último o responsável pela condução de procedimento instaurado para apurar as faltas do discente, o qual pode acarretar sua expulsão; (…)”
Em recente decisão, no entanto, o STJ afastou o requisito do nexo entre a comercialização do ato e a atribuição do funcionário público para praticá-lo.
No caso julgado (REsp 1.745.410/SP), dois funcionários públicos que trabalhavam em um aeroporto aceitaram vantagem indevida para facilitar o ingresso irregular de estrangeiro em território nacional, embora não exercessem função de controle imigratório. Para o STJ, tais indivíduos cometeram o crime de corrupção passiva, ainda que sua função não pudesse ser diretamente utilizada para que fosse atingido o propósito do corruptor.
Argumentou-se na decisão que se faz necessária uma mudança de perspectiva para conferir maior possibilidade de punição adequada a atos relativos ao comércio da função pública, o que se faz tanto para prestigiar a probidade administrativa quanto para potencializar os princípios da proporcionalidade e da isonomia. Segundo a ministra Laurita Vaz, a expressão “em razão dela” (ou seja, da função), contida no tipo do art. 317, permite que sejam abrangidos atos indiretamente ligados à função exercida pelo agente:
“Trata-se, a meu ver, de nítida opção legislativa direcionada a ampliar a abrangência da incriminação por corrupção passiva, quando comparada ao tipo de corrupção ativa, a fim de potencializar a proteção ao aspecto moral do bem jurídico protegido, é dizer, a probidade da administração pública.”
Cuida-se, com efeito, de uma mudança de perspectiva, pois a orientação a respeito desta matéria sempre seguiu no sentido de que era imprescindível o nexo entre a conduta do agente público e a realização do ato comercializado. No âmbito do próprio STJ há decisões a respeito:
“1. Para a configuração do crime previsto no artigo 317 do Código Penal exige-se que a solicitação, o recebimento ou a promessa de vantagem se faça pelo funcionário público em razão do exercício de sua função, ainda que fora dela ou antes de seu início, mostrando-se indispensável, desse modo, a existência de nexo de causalidade entre a conduta do servidor e a realização de ato funcional de sua competência. Precedentes.” (HC 135.142/MS, j. 10/08/2010)
Essas decisões vinham na esteira da orientação do Supremo Tribunal Federal, cujo pleno chegou a rejeitar denúncia que não demonstrava a conexão:
“A denúncia é uma exposição narrativa do crime, na medida em que deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias. Orientação assentada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que o crime sob enfoque não está integralmente descrito se não há na denúncia a indicação de nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de ato funcional de sua competência. Caso em que a aludida peça se ressente de omissão quanto a essa elementar do tipo penal excogitado. Acusação rejeitada.” (Inq. 785/DF, j. 08/11/95)
E, note-se, embora a recente decisão do STJ traga menção a voto da ministra Rosa Weber para sustentar a nova tese, ainda se vê, no próprio Supremo Tribunal Federal, menções à necessidade de que a conexão seja demonstrada:
“Para a aptidão de imputação de corrupção passiva, não é necessária a descrição de um específico ato de ofício, bastando uma vinculação causal entre as vantagens indevidas e as atribuições do funcionário público, passando este a atuar não mais em prol do interesse público, mas em favor de seus interesses pessoais.” (Inq 4506/DF, j. 17/04/2018) – destacamos
E faz todo sentido que assim seja, pois somente dessa forma é possível diferenciar a corrupção passiva do tráfico de influência. Se o agente não é competente para a realização do ato comercializado, sua única possibilidade de ação consiste em influir em ato praticado por outro funcionário público no exercício da função. Ora, esta é a própria definição do crime de tráfico de influência, que pode perfeitamente ser cometido por agentes públicos.
A decisão proferida agora pelo STJ torna difícil – para não dizer impossível – a diferenciação entre a corrupção passiva e o tráfico de influência. Se o primeiro crime pode ser cometido inclusive por quem tem apenas a capacidade de influir de alguma forma na prática do ato comercializado, o segundo passa a ter sentido prático reduzidíssimo.
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