Encerrada a primeira fase do procedimento do júri, denominada instrução preliminar, caso o juiz se veja convencido da materialidade do crime e da existência de indícios de autoria, deve pronunciar o réu, conforme prescrito no art. 413 do CPP.
Segundo dispõe o § 1º do art. 413, “A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena”. Veda-se, portanto, o excesso de linguagem, ou seja, em virtude do caráter restrito da pronúncia, o juiz deve se valer de linguagem sóbria e comedida, sem excessivo aprofundamento na análise da prova, de resto desnecessária porquanto na pronúncia apenas se remete o réu a Júri, cabendo ao Tribunal Popular, este sim, a análise detida do mérito. O excesso na linguagem poderá, mais adiante, exercer indesejável influência na convicção dos jurados, que receberão cópias da decisão e, leigos, podem se deixar impressionar com a terminologia utilizada pelo juiz togado.
A vedação ao excesso na sentença de pronúncia pode se refletir inclusive na possibilidade de interposição de recurso. Em decisão monocrática proferida pelo ministro Rogério Schietti Cruz (REsp 1.776.458/RS, j. 05/08/2019), o STJ não conheceu de recurso especial interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul para que se inserisse na sentença de pronúncia determinada expressão que, na visão do órgão acusador, deveria ser submetida aos jurados para que decidissem adequadamente sobre a caracterização de uma qualificadora do homicídio.
O agente havia sido denunciado por homicídio tentado qualificado por motivo fútil e por recurso que dificultou a defesa da vítima. Esta segunda qualificadora foi baseada na circunstância de que o acusado estava “em preparada situação de armamento”. Embora tenha reconhecido a qualificadora, a magistrada de primeira instância não fez uso da mesma expressão, justificando-se no fato de que a “preparada situação de armamento” é inerente a homicídios cometidos com armas de fogo. Por isso, e para evitar o excesso, admitiu que a qualificadora fosse submetida aos jurados, mas porque o crime havia sido “cometido mediante recurso que dificultou a defesa do ofendido – surpresa -, porquanto este se encontrava desarmado, em seu local de trabalho, quando o ofensor, de inopino, desferiu disparos em sua direção”.
O Ministério Público recorreu, mas o Tribunal de Justiça manteve a decisão de primeira instância:
“(…) Do mesmo modo, a expressão “em preparada situação de armamento” é elementar inerente ao tipo penal quando utilizada a arma de fogo. Nesse passo, pode-se falar que há verdadeiro excesso de acusação, pois na hipótese de uma qualificadora assim vertida ser apreciada pelo Conselho de Sentença, pode vir a representar, desde logo, uma indevida predisposição à condenação, mormente quando se sabe que os jurados decidem por íntima convicção.
(…)
Acertada, portanto, a decisão do juízo monocrático quando retirou do âmbito da qualificadora da surpresa a “preparada situação de armamento”, tal como pretende a acusação. Não prevalece, portanto, a irresignação acusatória nesse aspecto.
(…)
No caso em tela, não se trata de suprimir a qualificadora, mas, sim, de retirar dela parte de expressão utilizada na circunstância legal específica, delimitando-a, de modo que se tem por correta a decisão da magistrada de piso, que não desbordou, modo geral, de entendimento consagrado pelo próprio Superior Tribunal de Justiça e do entendimento defendido por esta Câmara, em vários julgados da mesma natureza, no sentido de que somente se excluem as qualificadoras da sentença de pronúncia quando manifestamente improcedentes e sem amparo nos autos. Nessas condições, a qualificadora deva ser mantida e submetida ao crivo dos jurados nos exatos termos da decisão vergastada, nem mais, nem menos.”
Em novo recurso, o Ministério Público pretendia que o STJ fizesse incluir na pronúncia a mencionada expressão, pois, da forma como inserida na sentença, a qualificadora estaria “faticamente delimitada”, ou seja, seria submetida aos jurados sem a completa descrição que havia constado na denúncia.
Mas o ministro Rogério Schietti Cruz não conheceu do recurso. Em primeiro lugar, porque a sentença de pronúncia é apenas um juízo prévio de admissibilidade da acusação que será submetida aos jurados. Não há espaço para excessos como a apreciação aprofundada de aspectos fáticos e probatórios:
“A decisão que submete o acusado a julgamento perante o Conselho de Sentença deve ser fundamentada em relação à materialidade do fato e aos indícios suficientes de autoria ou de participação delitiva, inclusive no que se refere às qualificadoras, haja vista o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal.
Não serve, todavia, a pronúncia para esmiuçar provas, estender-se em análise meritória, aduzir argumentos que, a rigor, desbordam da função de mero juízo de admissibilidade da acusação, sob pena, inclusive, de incorrer em excesso de linguagem e, eventualmente, ser desconstituída por avançar em matéria da competência dos juízes populares, que foram e julgam o acusado em sessão do Tribunal do Júri.”
Além disso, para o ministro, uma vez inserida a qualificadora para que fosse votada pelos jurados em plenário, perseverar na inserção de expressões específicas, ainda que tidas por relevantes, é preciosismo exacerbado, ao qual não corresponde interesse recursal:
“Ora, a majorante em apreço foi reconhecida e será levada ao Plenário do Tribunal do Júri. Fazer questão que esteja afirmada na pronúncia que o réu estava “em preparada situação de armamento” para configurar a surpresa ou impossibilidade de reação, com o devido respeito, é provocar a jurisdição extraordinária, contribuindo para o já caótico quadro de hiper-judicialização do Superior Tribunal de Justiça, sem que o móvel do recurso – a omissão da expressão indicada – configure qualquer violação ou contrariedade (ou negativa de vigência) de lei federal.
Se o réu foi pronunciado por haver, com arma de fogo, ceifado a vida da vítima, sem que esta pudesse reagir, porque pega de inopino e desarmada, de modo a dificultar sua defesa, qual a relevância de dizer que estava o réu “em preparada situação de armamento”? Por acaso foi a vítima morta por outro instrumento que não a arma portada pelo réu?
(…)
No caso vertente, não identifico interesse recursal algum a permitir o conhecimento do REsp, pois o que pediu o Ministério Público na pronúncia – a submissão do réu a julgamento por crime de homicídio qualificado, na forma do art. 121, § 2º, IV, do CP – foi atendido, de sorte a configurar clara ausência do basilar pressuposto da sucumbência da parte, do qual se origina o interesse de impugnar o ato decisório a ela prejudicial.”
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Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos