A condenação criminal pode ter efeitos que ultrapassam a execução forçada da sanção penal imposta. Há efeitos que decorrem automaticamente da sentença condenatória, como a obrigação de indenizar o dano causado e o confisco dos instrumentos e produtos do crime, assim como há outros que dependem da natureza do crime cometido e da devida fundamentação do juiz.
Dentre estes últimos, destacamos a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão. Trata-se de efeito da condenação disposto no art. 92, inc. II, do Código Penal, cujo propósito é evitar que condenados pela prática de delitos que contrariam a natureza do poder familiar mantenham seu exercício em detrimento dos interesses de quem está submetido a esse poder.
Segundo a redação dada ao art. 92 na reforma da Parte Geral em 1984, este efeito podia incidir apenas nos crimes cometidos contra filho, tutelado ou curatelado. Com a entrada em vigor da Lei 13.715/18 ampliaram-se as possibilidades de perda, pois inserem-se entre as vítimas que atraem o mesmo efeito a pessoa igualmente titular do poder familiar e outros descendentes além do filho. Vejamos, em comparação, as redações antiga e atual do dispositivo:
Redação dada pela Lei 7.209/94 | Redação dada pela Lei 13.715/18 |
II – a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado; | II – a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente ou contra tutelado ou curatelado; |
À parte da impropriedade linguística de desdobrar o substantivo filho em filho e filha – pois, como sabemos, filho engloba os dois gêneros tanto quanto o fazem tutelado e curatelado, dos quais a nova lei certamente não exclui a tutelada e a curatelada –, temos que algumas novas situações podem ensejar a perda do poder familiar: o crime cometido por um dos pais contra o outro que também seja titular do poder familiar (ou seja, que não o tenha perdido) e o crime cometido contra netos, bisnetos, etc.
Na primeira situação se incluem os casos de violência doméstica, não importa se do homem contra a mulher ou da mulher contra o homem. O indivíduo que agride a esposa grávida e lhe provoca, por exemplo, aceleração do parto, comete crime de lesão corporal de natureza grave, apenada com reclusão de um a cinco anos, e pode ser privado do exercício do poder familiar sobre o filho nascido prematuramente em decorrência da agressão.
Da mesma forma, ex-cônjuges, ex-companheiros ou mesmo ex-namorados que exerçam o poder familiar sobre menores de idade, e que cometam crimes apenados com reclusão contra a outra pessoa que partilhe do mesmo poder, podem sofrer este efeito da condenação.
A segunda situação abrange os crimes cometidos contra descendente que não o próprio filho, o que nos remete à situação em que a vítima é filha de alguém também menor de idade. Imaginemos, por exemplo, um caso de abuso sexual cometido pelo avô contra o neto de tenra idade, sendo este último filho de um adolescente de dezesseis anos, submetido ao poder familiar do agressor. Neste caso, a nova lei permite que o autor do crime perca o poder familiar em relação a seu filho.
É possível ainda vislumbrar a perda do poder familiar quando alguém comete crime contra seu neto e tem também um filho menor de idade, embora não vinculado em relação de ascendência com a vítima. A depender da situação concreta, é possível que o juiz criminal conclua que a manutenção do poder familiar sobre o filho contraria seus interesses.
É interessante observarmos que nesta nova forma de perda do poder familiar exercido sobre pessoas não vitimadas diretamente pelo crime não se aplica a discussão há muito existente a respeito da extensão da perda a filhos que não tenham sido vítimas do crime. Guilherme de Souza Nucci, por exemplo, entende que a consequência da condenação incide somente sobre a relação entre o condenado e a vítima, não alcançando outros filhos:
“O pai agride um de seus seis filhos; condenado por lesão corporal grave a uma pena de um ano de reclusão, pode o juiz determinar a incapacidade para o exercício do poder familiar em relação àquela vítima. Os outros cinco filhos podem perfeitamente continuar sob sua tutela.” (Manual de Direito Penal. 6ª ed. São Paulo: RT, 2009, p. 554)
Já Cleber Masson sustenta o contrário:
“Essa incapacidade pode ser estendida para alcançar outros filhos, pupilos ou curatelados, além da vítima do crime. Não seria razoável, exemplificativamente, decretar a perda do poder familiar somente em relação à filha de dez anos de idade estuprada pelo pai, aguardando fosse igual delito praticado contra as outras filhas mais jovens, para que só então se privasse o genitor desse direito.” (Direito Penal Esquematizado – Parte Geral. 2ª ed. São Paulo: Método, 2009, p. 798)
No caso da perda do poder familiar diante de crimes cometidos contra descendente que não o próprio filho essa discussão não tem cabimento porque a limitação proposta pela primeira corrente doutrinária tornaria inaplicável o efeito da condenação. Isto porque o poder familiar só é exercido pelos pais, como se extrai dos artigos 1.634 do Código CivilArt. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município; VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. e 21 do Estatuto da Criança e do AdolescenteArt. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência. . Dessa forma, os avós não podem exercê-lo, cabendo-lhes, caso necessário, o exercício da guarda e da tutela. O que se pretende, portanto, com a redação dada pela Lei 13.715/18 é permitir a perda do poder familiar sobre menores que não sejam vítimas diretas da conduta praticada pelo agente, mas que de alguma forma sejam colocados em risco por ela.
A Lei 13.715/18 alterou também o Código Civil para inserir no art. 1.638 um parágrafo único dispondo que perde o poder familiar quem:
“I – praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar:
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher;
b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão;
II – praticar contra filho, filha ou outro descendente:
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher;
b) estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão.”
Neste caso, podemos traçar um paralelo com a condição de indignidade que exclui da sucessão os herdeiros que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente. No geral, a doutrina trata a indignidade como algo independente do juízo criminal, ou seja, a exclusão da sucessão pode ocorrer com base na prova produzida unicamente no juízo civil. É o que ensina Sílvio de Salvo Venosa:
“Não é exigida a condenação penal. O exame da prova será todo do juízo cível. Indigno é o que comete o fato e não quem sofre a condenação penal (Pereira, 1984, v. 6:30).” (Direito Civil – Direito das Sucessões. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 62/63)
A relevância da sentença criminal para o afastamento da indignidade existe apenas quando estabelecida a inexistência do fato ou quando afastada peremptoriamente a possibilidade de autoria. É, aliás, o que aponta o mesmo autor:
“No entanto, se o juízo conclui pela inexistência do crime ou declara não ter o agente cometido o delito, bem como se há condenação, isso faz coisa julgada no cível.”
Pensamos que o mesmo pode se dar nos casos de perda do poder familiar em virtude do cometimento dos crimes elencados no novo parágrafo único do art. 1.638, que, destaque-se, é composto pelo verbo praticar, sem nenhuma referência à necessidade de condenação.
Por fim, a Lei 13.715/18 alterou o art. 23, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente para – assim como fez no art. 92, inc. II, do CP – ampliar sua incidência: “A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente”.
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