Pune-se no caput do art. 217 do Código Penal o indivíduo que tem conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso com alguém menor de 14 anos de idade. A conduta de praticar atos libidinosos abrange tanto o ato sexual no qual tem a vítima um comportamento passivo (permitindo que com ela se pratiquem os atos) como aquele em que tem um comportamento ativo (praticando ela mesma os atos de libidinagem no agente ou em seu próprio corpo).
O delito se consuma com a prática do ato de libidinagem. A tentativa é possível quando, iniciada a execução, o ato sexual visado não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.
Algumas decisões tomadas nos últimos anos, especialmente pelo STJ, ampliam cada vez mais as possibilidades de que se perfaça o crime. O tribunal já decidiu, por exemplo, que o estupro pode se caracterizar inclusive em situações nas quais não há contato físico entre o agente e a vítima, como, por exemplo, no caso de contemplação lasciva de uma criança nua. Trata-se do RHC 70.976/MS, mencionado em decisão recente:
“Não é despiciendo lembrar que “a proteção integral à criança, em especial no que se refere às agressões sexuais, é preocupação constante de nosso Estado, constitucionalmente garantida (art. 227, caput, c/c o § 4º da Constituição da República), e de instrumentos internacionais.” (REsp 1.028.062/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 02/02/2016, DJe 23/02/2016.)
Inspirada nesse mandamento constitucional, a Quinta Turma deste Superior Tribunal de Justiça, em recente precedente de Relatoria do em. Min. Joel Ilan Paciornik, lembrou que “a maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido”. Destacou-se, ali, que o “estupro de vulnerável pode ser caracterizado ainda que sem contato físico”. Na assentada, esta relatoria ainda salientou que “o conceito de estupro apresentado na denúncia (sem contato físico) é compatível com a intenção do legislador ao alterar as regras a respeito de estupro, com o objetivo de proteger o menor vulnerável. Segundo o ministro, é impensável supor que a criança não sofreu abalos emocionais em decorrência do abuso”. (Notícia extraída do sítio eletrônico do STJ, cuja veiculação ocorrera no dia 3/8/2016)” (AgRg no REsp 1.819.419/MT, j. 19/09/2019).
Seguindo essa tendência, e atento à adoção de novos meios de abuso de sexual de menores que a tecnologia proporciona, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve condenação de um indivíduo que, por meio da internet, induziu uma criança de dez anos a se exibir nua em uma webcam e a praticar diversos atos de natureza libidinosa.
Em resumo, o agente se valia de redes sociais para se aproximar de crianças e estabelecer contato duradouro. Durante as conversas, introduzia conteúdo de cunho sexual a fim de induzi-las à prática de atos libidinosos. E alcançou seu intento em ao menos um caso:
“O denunciado ********** conheceu *************, através do site “OMEGLE”, utilizando o perfil de “**********”; após questionar o menino se o mesmo possuía perfil no Facebook, pediu para ******* que o adicionasse em seus contatos de amizade, então, passou a ter conversas de cunho sexual com a vítima, pedindo para o menino despir-se diante da webcam, se masturbar e “abrir a bunda”, bem como em uma das ocasiões, lhe mostrou o pênis diante da webcam dizendo que gostaria de fazer sexo com o menino.
A transmissão das imagens se dava, dentre outros métodos, através de sistemas do Facebook e Skype.
Registre-se que foram acostadas às fls. 08/17 dos autos, cópias das páginas do site de relacionamentos Facebook do perfil de “****” e de ******* nos quais constam os referidos diálogos, dentre os quais, destacam-se algumas conversações abaixo transcritas.
[…]
Após assediar a criança via comunicação por internet conforme descrito no item I, o denunciado convenceu-a a realizar simultânea masturbação para o alcance da satisfação de sua libido. Estando ambos conectados, orientava a criança a tirar roupa, praticar masturbação, exibir a região anal e peniana além de conversar sobre felação e coito anal.
Ainda que não houvesse contato físico entre ambos, as praticas libidinosas diversas da conjunção carnal – masturbação -, foram realizadas de forma simultânea no mesmo ambiente virtual, como se juntos estivessem”.
Em concurso com o estupro de vulnerável, o Ministério Público imputou os crimes dos artigos 241-D, parágrafo único, inc. II, 240 e 241-B, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente. O primeiro, porque o agente havia assediado a criança com o fim de com ela praticar ato libidinoso e de induzi-la a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita. O segundo, porque, ao registrar a criança praticando atos libidinosos, produziu cena de sexo explícito e pornográfica por meio de comunicação de vídeo. O terceiro, porque, durante a execução de mandado de busca e apreensão, constatou-se que ele armazenava milhares de vídeos e fotografias envolvendo crianças e adolescentes em cenas de sexo explícito e pornográficas. Em primeira instância, impôs-se a absolvição apenas sobre o crime do art. 240 do ECA.
No mérito de sua apelação, o condenado buscava a absolvição pelos demais delitos alegando, além de insuficiência probatória e questões relativas à atipicidade do estupro praticado por meio virtual, erro de tipo por desconhecimento da idade da vítima e desclassificação do estupro para o delito previsto no art. 241-D, parágrafo único, II do ECA ou para o do art. 215-A do CP.
Sua pretensão, no entanto, foi inteiramente rejeitada.
Interessam-nos neste artigo apenas os argumentos utilizados para a condenação pelo estupro de vulnerável, tendo em vista que as condutas tipificadas no Estatuto da Criança e do Adolescente envolvendo material de pornografia infantil são comumente praticadas por meios eletrônicos, e sobre isso não há controvérsia que nos possa atrair a atenção.
Inicialmente, o tribunal considerou bem provada ocorrência dos atos libidinosos, não somente em razão do depoimento da criança, que confirmou ter se masturbado juntamente com o condenado, mas também pelo teor de mensagens de texto trocadas entre ambos nas ocasiões em que ocorreram os fatos. Diante da prática dos atos de cunho sexual, os julgadores aderiram à tese de que o estupro dispensa o contato físico entre o sujeito ativo do crime e a vítima. O que importa para a caracterização do crime é a prática de atos sexuais por meio da interação entre o criminoso e a vítima, mas pouco importa a localização de cada indivíduo no momento em que tais atos são praticados:
“Ab initio, há que se referir que a conduta do incriminado não é atípica, porquanto não apenas o toque lascivo é capaz de configurar o delito em comento, o resultado naturalístico/jurídico, podendo, inclusive, advir de situações em que aquele não ocorra.
Como já assentado pela Colenda Quinta Turma do E. STJ, por ocasião do julgamento do RHC 70.976/MS, em 02.08.2016, de relatoria do ilustre Ministro Joel Ilan Paciornik, o que pontuado pela magistrada singular, prescinde à consumação dos tipos penais do art. 213 e art. 217-A a ocorrência de contato físico entre a vítima e o abusador, bastando a mera “contemplação lasciva” à configuração de tais delitos, a situação presente guardando perfeita sintonia com a hipótese enfocada no precedente.
[…]
Por fim, arremata Cleber Masson que “o estupro de vulnerável e também o estupro) realmente não depende de contato físico entre o agente e a vítima. Exige-se, contudo, o envolvimento físico desta no ato sexual, mediante a prática de ato libidinoso (exemplos: automasturbação, relação sexual com animais etc.)” (in Direito Penal: parte especial (arts. 213 a 359-H) – vol. 3. 9 ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019, p. 63).
Portanto, a solução é casuística, devendo-se observar se o bem jurídico tutelado pela norma penal – dignidade sexual do menor de 14 anos –, restou atingido.
Isto assentado, não me assaltam dúvidas de que o incriminado cometeu o crime previsto no art. 217-A do CP, a prova acusatória mostrando-se apta ao decreto condenatório, a vítima, criança de apenas 10 anos de idade ao tempo dos fatos, de forma coerente, narrando a violência sexual à que submetida, esclarecendo que, em duas ocasiões, manteve contato com o réu por meio de Webcam, oportunidade em que ele se despiu, passando a se masturbar, solicitando que fizesse o mesmo, o que atendeu, a primeira por meio do site “Omegle” e a segunda, da rede social Facebook.
[…]
Isso não bastasse, a narrativa do lesado – ainda que sozinha, insisto, pudesse lastrear o decreto condenatório –, veio corroborada pelos diálogos anexados aos autos, dos quais se depreende claramente que o réu efetivamente praticava atos libidinosos diversos da conjunção carnal com o menor, oportunidades em que ambos se masturbavam, concomitantemente, durante contato mantido por meio de WebCam (fls. 97/105).
Quanto ao mais, os abusos, assim com a descoberta pelo pai do ofendido e a deflagração da investigação policial foram narradas pormenorizadamente em juízo pelo pai do lesado, em consonância com as declarações dos policiais civis que atuaram na investigação criminal, esclarecendo que o increpado foi localizado por meio dos IP’s dos locais onde ele utilizava o perfil falso que mantinha na rede social Facebook (fls. 892/894 e 899v/902).
Ainda, o próprio acusado, quando interrogado em juízo, em que pese negando ter se masturbado na frente da vítima, admitiu que em uma oportunidade visualizou o menino manipulando o órgão genital por meio da WebCam, mencionando que “ambos se estimularam a se exibir” (CD à fl. 632, 6min5seg e 7min46seg).
Nesse prisma, não subsiste a alegação da defesa técnica, veiculada em seu arrazoado recursal, de inexistência de “mínimo de interação sexual entre o ofensor e o infante” (fl. 799), plenamente demonstrada, a prática, pelo apelante, de atos libidinosos diversos da conjunção carnal com vulnerável, de modo que inaplicável, in casu, a técnica de distinguinshing, ante a similitude das circunstâncias fático-jurídicas dos fatos em julgamento ao entendimento consolidado pela Colenda 5ª Turma do E. STJ.
Por fim, despicienda à caracterização do tipo penal a presença física do agente a fim de impossibilitar a resistência da vítima, porquanto o óbice consiste justamente na tenra idade do ofendido, circunstância que retira a sua capacidade de externar o consentimento válido, caracterizando, via de consequência, a presunção de vulnerabilidade que o tipo reclama, lembrando que na figura penal prevista no art. 217-A do CP não há previsão da elementar “constrangimento, porque a violência é ínsita à conduta de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”.
Também foi afastada a tese do erro de tipo, baseada no interrogatório do condenado, oportunidade em que ele afirmou desconhecer que se tratasse de uma criança, pois nos contatos iniciais a vítima afirmara ter dezesseis anos.
O erro de tipo é disciplinado no art. 20, caput, do Código Penal: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”. Neste caso, o agente ignora ou tem conhecimento equivocado da realidade. Cuida-se de ignorância ou erro que recai em elementares, circunstâncias ou quaisquer dados que se agregam a determinada figura típica. O erro de tipo essencial, que recai nos dados principaisEm oposição ao erro acidental, que atinge elementos secundários e, por isso, não afasta a responsabilidade penal. do tipo penal, pode ser escusável (inevitável) ou inescusável (evitável), conforme seja ou não previsível, e, a depender da situação, exclui o dolo e a culpa ou somente o dolo, situação que permite a punição pelo crime culposo, caso seja tipificado.
No caso do estupro de vulnerável, o erro de tipo é possível se, por exemplo, alguém mantém relação sexual com um menor de quatorze anos que omite sua idade e aparenta ser mais velho. Ainda que no campo da prova seja difícil imaginar uma situação em que esta tese possa ser bem sucedida, teoricamente não há dúvida de que é possível.
Ocorre que no caso julgado não havia o menor espaço para que se alegasse ignorância sobre a realidade, tendo em vista que os contatos iniciais efetuados pelo condenado ocorreram por meio do perfil mantido pela criança no Facebook, no qual constava uma fotografia verdadeira que revelava suas características físicas. Não bastasse, a tenra idade da vítima se evidenciou quando ela se exibiu nua pela webcam. Alia-se a isso o fato de que na residência do condenado havia sido apreendido extenso material de pornografia infantil, o que confirmava sua intenção de se relacionar (ainda que virtualmente) com crianças:
“Por outro lado, no que concerne à tese de erro de tipo vertida pelo acusado em defesa direta, bem como pela defesa técnica em seu arrazoado recursal, melhor sorte não lhe assiste.
Consoante já referido alhures, ao simples vislumbre da fotografia do ofendido inserida em seu perfil na página da rede social Facebook, à fl. 09 do apenso, à época dos fatos, salta aos olhos a tenra idade do ofendido.
E não se está aqui a falar de adolescente, com idade próxima aos 14 anos de idade, circunstância que poderia emprestar mínima plausibilidade à tese de erro de tipo, mas sim de criança com apenas 10 anos de idade.
Assim, absolutamente inverossímil a afirmação do acusado, de que acreditou que o ofendido possuía 16 anos de idade à época dos fatos (CD à fl. 632, 2min32seg), conclusão reforçada pelo contexto de sua prisão em flagrante, oportunidade em que apreendidas diversas mídias contendo grande quantidade e material pornográfico infantil (4º fato), bem como pela imagem da tela inicial do perfil falso utilizado pelo increpado na rede social Facebook, evidenciando que a maioria de seus “amigos” virtuais eram crianças (fl. 08 do apenso).
E nem se diga que chats e sites de relacionamento exigem que o usuário possua determinada faixa etária, porquanto sabidamente não há qualquer verificação quanto à real idade das pessoas cadastradas, circunstância indiscutivelmente de conhecimento do acusado, estudante universitário e sabedor do modo de funcionamento de tais ferramentas, até mesmo porque, como já referido, possuía muitas crianças no círculo de amizade “virtual” que criara mediante a utilização de perfil falso.
Nesse contexto, inarredável a conclusão de que “(…) O erro de tipo em face à ignorância em torno da idade da vítima, não obstante tenha resguardo jurídico, se tornou um modo corriqueiro de se eximir da condenação penal. (…)”. Todavia, “(…) É preciso que haja proteção de fato e de direito às crianças e adolescentes brasileiros, pois de nada adiantará todo o aparato judicial preventivo se não aplicado de forma efetiva.” (REsp 1464450/SC, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 17/08/2017, DJe 23/08/2017) (grifei)
Sob qualquer enfoque, então, descabe o pleito de reforma, o decreto condenatório estando bem fundamentado”.
Finalmente, o tribunal rechaçou os pedidos subsidiários de desclassificação do estupro de vulnerável para o art. 241-D, parágrafo único, inc. II, do ECA (que, aliás, já havia sido imputado) ou para o art. 215-A do CP.
O tipo penal do art. 241-D, parágrafo único, inc. II, do ECA é evidentemente marcado pela prevenção, pois, punindo aquele que simplesmente se põe a aliciar, assediar, instigar ou constranger a criança, pretende evitar a ocorrência de fato muito mais grave e de efeitos devastadores, ou seja, o efetivo contato sexual entre o agente e a vítima. Logo, se houve a prática de atos libidinosos, é inadmissível que se puna esta conduta na forma do art. 241-D. Tanto o juízo de primeiro grau quanto o Tribunal de Justiça admitiram o concurso entre o aliciamento e o estupro que lhe seguiu, e isto pode até ser debatido na esfera do conflito aparente de normas (o aliciamento como antefato impunível), mas jamais seria possível atribuir a natureza de simples aliciamento aos atos materiais de indução à prática de libidinagem. Em suma, o aliciamento foi cometido, mas inicialmente, quando o condenado buscava desenvolver com a vítima o vínculo de confiança que lhe permitiria, passado algum tempo, criar o ambiente adequado para a prática dos atos sexuais.
Também não seria possível subsumir a conduta ao tipo da importunação sexual.
O crime do art. 215-A do CP consiste em praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. O tipo pressupõe simplesmente que determinado indivíduo pratique um ato de autossatisfação tendo como objeto outra pessoa. Mas, como vimos, a conduta atribuída ao agente foi muito além disso ao envolver a própria criança na prática de atos libidinosos.
Conjuga-se a isso o fato de que o art. 215-A é expressamente subsidiário: aplicam-se as penas da importunação sexual se a conduta não caracteriza crime mais grave. Por isso, a falta de anuência não pode consistir em nenhuma forma de constrangimento (no sentido próprio do estupro), e, obviamente, a vítima não pode ser alguém cuja idade tornaria seu consentimento absolutamente irrelevante, caso em que há estupro de vulnerável. Lembremos que, segundo a narrou a criança (em relato de absoluta relevância para a condenação), não apenas o condenado se masturbou por meio da webcam, mas ela própria praticou atos libidinosos que afastam qualquer possibilidade de se tipificar o crime subsidiário.
A decisão da corte estadual, que segue a tendência de tratar com todo o necessário rigor crimes sexuais que vitimam menores, é um precedente importantíssimo não apenas para garantir a devida punição de atos tão graves quanto os praticados por meio da presença física de seus atores, mas também para alertar a respeito dos riscos cada vez maiores a que são submetidas crianças com acesso irrestrito a recursos tecnológicos.
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